Por: Renato Souza Dória.
Professor e pesquisador do IHBAJA
Uma das últimas favelas da Baixada de Jacarepaguá a passar pelo drama da ameaça de remoção foi a de Rio das Pedras, em agosto de 2017. No mês anterior, o então prefeito da cidade Marcelo Crivella reuniu-se com um grupo de empresários para discutir um projeto de reurbanização para o Rio das Pedras, que pretendia “verticalizar” a favela a um custo de quase 2 bilhões de reais.
Ainda de acordo com a proposta da Prefeitura, cerca de 80 mil moradores seriam afetados pela iniciativa e teriam que ser realocados em um terreno próximo à favela, enquanto as empreiteiras construíssem, em até um ano, inúmeros prédios de até 12 andares. Os apartamentos construídos pelas empreiteiras seriam vendidos aos moradores por meio de financiamento do Programa Minha Casa, Minha Vida.
Contudo, quando os moradores tomaram conhecimento da proposta, identificaram inúmeros problemas e começaram a organizar uma resistência. Realizaram várias manifestações, inclusive na Câmara Municipal. Passaram a defender a permanência nas próprias casas e a continuidade de ações de saneamento e instalação de infraestrutura de serviços.
Uma comissão de moradores, tendo inúmeras mulheres a frente, alertou sobre a existência de interesses imobiliários no projeto apresentado pela Prefeitura e destacou que o mesmo foi feito pouco tempo depois das empresas Cedae e Light investirem mais de 140 milhões de reais em infraestrutura para ofertar futuros serviços. Além disso, a comissão alertava para a possibilidade de muitas famílias não conseguirem arcar com os custos de manutenção da nova moradia, demonstrando que a remoção dos moradores seria uma das consequências do projeto apresentado pelo Prefeito Crivella.
Mas essa luta contra a remoção e pela urbanização de favelas na Baixada de Jacarepaguá é antiga. Moradores de Vila Autódromo, por exemplo, defendem a urbanização de favelas como alternativa à política de remoção, pelo menos, desde o primeiro governo César Maia, no início da década de 1990, durante as primeiras tentativas de remoção por parte da subprefeitura. Mas no início da década de 1980 outra favela liderava as ações de reivindicação por políticas públicas de saneamento básico e urbanização em Jacarepaguá: Rio das Pedras.
Durante os governos estaduais de Chagas Freitas e Leonel Brizola a pressão dos moradores de Rio das Pedras foi constante. Regularização fundiária, saneamento básico e urbanização constavam na pauta de reivindicações dos moradores desta e de outras favelas da região já no início dos anos 1980. A necessidade de sobrevivência, a manutenção de formas de sociabilidades locais e a luta por uma vida mais digna em uma das favelas mais populosas do subúrbio carioca eram as principais motivações que impulsionavam os moradores de Rio das Pedras para a mobilização política.
Às vésperas das eleições de 1982 uma comissão de mais de 200 mulheres, representando mais de 17 mil moradores de Rio das Pedras, entregou um documento ao então secretário estadual de desenvolvimento social, Vicente Barreto, apresentando duas reivindicações fundamentais: título de propriedade e saneamento básico.
“Em seu documento, os moradores reclamam que nos últimos 10 meses morreram dez moradores vítimas de diarreia, verminose e hepatite, em consequência da falta de dragagem do canal do Rio das Pedras.”
No mês de novembro do ano de 1983, o jornal Última Hora noticiava que
“...moradores das vinte favelas de Jacarepaguá vão ao Palácio Guanabara pedir ao Governador do Estado a revisão do Plano de Saneamento para a área de Jacarepaguá e Barra da Tijuca.”
Na ocasião, os moradores de Rio das Pedras alegavam que antes mesmo do plano ser elaborado já havia a cobrança dos moradores de favelas junto à Cedae para realização de obras de saneamento básico. Portanto, estas localidades deveriam ter prioridade na execução do Plano Estadual de Saneamento. Contudo, na primeira etapa do plano elaborado pela Cedae e pela Secretaria de Obras do Estado, áreas povoadas como as favelas da região de Jacarepaguá não seriam contempladas. Por outro lado, imensas áreas vazias da Barra da Tijuca e os recém-construídos condomínios Tijucamar e Jardim Oceânico já seriam contemplados pelas obras.
Gilberto Lobato, então presidente da Associação de Moradores de Rio das Pedras questionava a Cedae por não atender áreas com muitos anos de ocupação, como o Rio das Pedras, e priorizar o saneamento de áreas desocupadas da Barra da Tijuca. Desta forma, os moradores demonstravam compreender que os problemas pelos quais passavam eram políticos, uma vez que as ações de saneamento básico e urbanização de sucessivos governos atendiam primeiramente as regiões onde havia um mercado imobiliário de alto poder aquisitivo. Enquanto lutavam pelo tão desejado saneamento e urbanização durante a década de 1980, moradores de favelas de Jacarepaguá conviviam diariamente com enchentes, valas negras, lama e epidemias de infecções atingindo as crianças e adultos.
Três meses depois das manifestações em frente ao Palácio do Planalto, já em fevereiro de 1984, uma comissão com mais de 90 moradores acampava desde às 6h da manhã em frente à residência particular do governador. Empunhando faixas e cartazes, reivindicavam uma solução para o drama de mais de 1800 famílias que viviam em condições precárias de habitação. Aproximadamente 300 famílias daquele total, sem condições de esperar mais tempo vivendo sobre o esgoto, ocuparam uma área destinada ao acostamento da avenida Engenheiro Souza Filho e passaram a sofrer violências por parte da polícia militar.
As cerca de 1800 famílias estavam há meses cadastradas no programa Cada Família Um Lote, porém, ainda não tinham sido contempladas com as ações do programa. Aos manifestantes foi prometido que uma comissão formada por representantes de órgãos da Prefeitura e do Governo Estadual faria uma visita à favela para avaliar como viabilizar, a médio prazo, as reivindicações por urbanização, saneamento e títulos de propriedade.
Desde fins da década de 1970 havia aumentado, na cidade do Rio de Janeiro, a quantidade de favelas organizadas em associação de moradores. Nessa época, a maioria das associações de moradores de favelas cariocas havia se formado em torno de três demandas principais: luta contra remoção, regularização fundiária e urbanização (saneamento básico). Num período marcado pela retomada de ações de mobilização política dos trabalhadores contra a ditadura civil-militar, moradores de favelas do subúrbio carioca também se organizavam politicamente para reivindicar acesso a direitos básicos como moradia digna, saneamento básico e urbanização.
Enfrentavam o descaso das autoridades governamentais, o poder econômico e político de empresas do setor imobiliário e a violência policial enquanto colocavam em prática diferentes formas de mobilização e luta política. É indiscutivelmente nítida a semelhanças dos problemas enfrentados no presente e no passado por moradores de favelas, evidenciando que as causas dos mesmos, se estão longe de serem resolvidos, ao menos são identificáveis e possíveis de serem enfrentados.
Sobre o autor: Renato de Souza Dória é graduado em História pela Universidade Gama Filho e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Atua como professor de História e Sociologia do ensino básico da SEEDUC-RJ e é pesquisador do Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá.
Comentários