A Barra da Tijuca dos sonhos... de quem?
- Fernanda Calé

- 1 de nov.
- 5 min de leitura

Por: Leonardo Soares dos Santos.
Professor de História/UFF e pesquisador do IHBAJA.
"Barra da Tijuca, o lugar" é o título do livro lançado em 1999 por Ayrton Luiz Gonçalves. E passados mais de 25 anos de seu lançamento, asseguro com toda confiança que ele ainda é um dos melhores trabalhos de história sobre o bairro.
Trata-se de um texto muito bem escrito, legível, leve em muitas das vezes e ricamente documentado. Uma das partes mais interessantes do trabalho é o uso que o autor faz de classificados imobiliários de época (anos 60 e 70) para evidenciar a expansão urbana da região (incluindo o Recreio dos Bandeirantes).
Temos diante de nós um estudo sério e comprometido de um morador, apaixonado pelo bairro em que habitava desde os fins dos anos 70, mas que já conhecia desde 1948. É notável que, mesmo sendo químico de formação, Gonçalves tenha tratado com tanto esmero os documentos históricos que levantou para a empreitada. Mas, em que pese o grande esforço em basear a árdua pesquisa em sólido terreno da objetividade, o autor deixa transparecer muito de sua subjetividade.
Vou me ater aqui sobre como essa tal subjetividade tem muito a dizer sobre uma determinada visão que o autor tinha sobre a história do lugar, o papel que a região deveria desempenhar e quais classes sociais deveriam fazer parte da (ou a melhor parte da) região. Podemos resumir a questão lembrando o que Antonio Gramsci, o filósofo italiano, dizia sobre o conceito de visão de mundo. Vejamos então como a ideia que Ayrton Gonçalves tinha sobre a Barra da Tijuca era reveladora de uma determinada visão de mundo.

E o ponto de vista do autor a respeito do que era a Barra encontra-se disseminado de maneira evidente em muitas partes do texto. Logo no “Intróito”, ele escreve que:
"Os pontos de referência no bairro da Barra da Tijuca são os grandes empreendimentos imobiliários e comerciais, os supermercados e shoppings centers ou os balizamentos naturais - a sudoeste, o Recreio dos Bandeirantes e, a nordeste, o Morro do Joá" (p. 23).
Mais adiante, as referências seguem indicando como emblemas tipos bem específicos de construções, aos quais estavam ligados tanto a atividades sociais e econômicas bem definidas, como - a partir daí – relacionavam-se a grupos sociais igualmente bem definidos. Vejamos:
"Com a melhoria dos acessos, aumentou a frequência à Barra da Tijuca, sobretudo para os moradores da Zona Norte da Cidade, que a atingiam pelas Vias 9 e 11, viabilizando a criação de vários clubes, como o Fazenda Clube Marapendi, o Clube Canaveral, ambos na Rio-Santos, e outros, na Avenida Sernambetiba, o Riviera Country Clube, o Nevada Praia Clube, o Vivendas Clube da Barra, o Oásis Clube do Rio de Janeiro, o Week End, o Edifício Fanny e o Country Clube de Caça e Pesca. Hoje, alguns deles transformaram-se em condomínios residenciais" (p. 94).
Empreendimentos imobiliários, clubes, shoppings centers – tudo isso direcionado à classe média carioca. Esses seriam os marcos arquitetônicos e sociais do território. É como se a Barra da Tijuca tivesse sido criada para aquela. Sintomático que os grupos sociais e os usos e atividades por eles realizados no território fossem vistos como algo anormal, a ser combatido ou evitado. Num trecho emblemático, Ayrton Gonçalves tece elogios a um prefeito que se notabilizou por reprimir habitações populares e atividades econômicas que destoassem do plano idealizado para a Barra dos shoppings. Segundo o autor, “a administração de César Maia caracterizou-se por enfrentar com decisão as ocupações indevidas na região da Barra da Tijuca, sobretudo nos locais mais nobres, desvalorizados e descaracterizados por um crescente processo de favelização não reprimida” (p. 102).
A contrariedade demonstrada pelo autor com aspectos do território que se manifestavam no período em que escreveu o texto (fins da década de 1990) também se revela na avaliação que ele faz de antigas propostas ventiladas para o desenvolvimento da Barra. Uma delas foi o plano de incluir toda a Baixada de Jacarepaguá (e, portanto, a Barra da Tijuca) no projeto de implantação da reforma agrária. Tal plano do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) é classificado pelo autor como uma curiosidade “estapafúrdia”, pois, no seu entender, “chega a ser engraçado imaginar essa área, com o potencial que tem para a Cidade do Rio de Janeiro, transformada em campos de cultura de soja, cana-de-açúcar ou pequenas lavouras de produtos hortigranjeiros” (p. 124).
Em outro momento da obra, o autor comemora vividamente a expulsão de moradores de uma área valorizada na Barra. Os habitantes dessa ocupação estariam ameaçando o meio ambiente na localidade:
"Felizmente, na área lindeira à Via Parque, nos fundos do Barrashopping, foi possível, através de enérgica ação dos órgãos municipais e a pressão do Barrashopping, retirar os ocupantes, a cada dia mais numerosos, que vinham degradando os manguezais característicos da lagoa da Tijuca, possibilitando a substituição da favela por um parque público, o Parque Mello Barreto, que será, quando inteiramente pronto, dotado de ciclovia, bosque de bromélias e dois longos decks de madeira, projetados sobre a lagoa, para que os frequentadores do local tenham a possibilidade de um contato mais íntimo com o meio ambiente, à semelhança com o que ocorre na região dos Everglades, no sul da Flórida" (p. 135).
Não caberia meio-termo com aquilo que ameaçasse a paisagem natural e social da Barra. A expulsão dessas formas exigia medidas mais duras; a linguagem utilizada prefigura uma verdadeira guerra:
"Urge que providências sejam adotadas. As favelas que puderem ser urbanizadas e dotadas dos equipamentos mínimos que garantam aos seus moradores viver com conforto e dignidade, que o sejam, mas, do outro lado, as que estão em áreas de preservação ambiental ou correm risco causados por intempéries devem ser removidas ou erradicadas, como foram, recentemente, as favelas da Via Parque e a do Condomínio Marapendi." (p. 154).
Em que pese a dureza das afirmações, é necessário assinalar: elas nunca foram isoladas. As palavras de Ayrton Gonçalves são um sintoma de uma visão mais geral, de um caldo de cultura que associa a Barra a determinadas classes e “raças”. E tal associação segue sendo hegemônica até hoje. Ela ajuda a legitimar toda uma política de repressão e controle de grupos e formas de habitação que não correspondem ao plano de ocupação idealizado.
Mas é importante frisar também que são exatamente expressões como essa que analisamos acima que podem nos servir de incentivo para mostrar que a Barra não se resume ao plano que as elites da cidade imaginaram para ela. A Barra não é apenas dos shoppings e condomínios de luxo. A Barra é também das favelas. A Barra tem também outras paisagens. Que vivem sob o peso constante de pressões e ameaças. E que resistem.
Não apenas outras paisagens. É preciso reafirmar que a Barra não tem uma história única. Precisamos falar de suas outras histórias. E elas não podem mais seguir sendo invisibilizadas. Precisamos falar dessa outra Barra. Barra Negra, do povo trabalhador e camponês (e pescador). Há que se falar mais da Barra Negra da Tijuca.
É disso que tratarei nos artigos que se seguirão.
Referência completa do livro citado:
GONÇALVES, Ayrton Luiz. Barra da Tijuca, o lugar. Rio de Janeiro: Thex Ed., 1999.

Leonardo Soares dos Santos é graduado (2003) em História pela Universidade Federal Fluminense, onde realizou também o seu mestrado (2005) e doutorado (2009) em História Social. Suas pesquisas versam basicamente sobre as relações entre o espaço rural e urbano e suas implicações em termos de políticas públicas e configuração de grupos sociais. Atualmente trabalha como professor e pesquisador no Departamento de Fundamentos da Sociedade do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional do Polo Universitário da Universidade Fluminense, localizado em Campos dos Goytacazes. É membro-militante do Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá desde 2010.




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