Quando Rio das Pedras era só um rio
- Agência Lume

- 22 de set
- 10 min de leitura

Entre fazendas e sítios, veja as memórias de um território rural e bucólico que, nos anos 1940-1960, atraía tanto elites quanto famílias humildes fascinadas pela liberdade e pelas belezas naturais.
Por: Leonardo Soares
Quem estivesse em qualquer ponto da Rua Velha nos anos de 1940 poderia contemplar sem nenhum esforço verdadeiras dádivas da flora e fauna do Rio de Janeiro. De um lado, a visão alcançava porções esplendorosas da Floresta da Tijuca, com sua fauna particular (capivaras, pacas, guaribas, gambás) passeando pela região; do outro, um verdadeiro tapete verde, cercado por lagoas e rios, formando uma bacia hidrográfica rica em recursos e possibilidades.
Toda essa descrição está presente na obra realizada por Magalhães Corrêa sobre o “Sertão Carioca”, como ele chamava a Baixada de Jacarepaguá no início dos anos 1930. Magalhães Corrêa foi um estudioso e naturalista que trabalhou no Museu Nacional e ficou simplesmente arrebatado pelas belezas naturais e pelas formas de vida marcadamente rurais ainda existentes no território. Ele relataria toda essa experiência em artigos que escreveu para o Correio da Manhã entre os anos de 1931 e 1932.
Pouco mais de 10 anos depois as descrições seguiam sendo válidas para boa parte dessa região. Inclusive para o que conhecemos hoje como Rio das Pedras. Um exemplo é o da Rua Velha citada acima, que era de tal exuberância que atrairia a atenção de muita gente pelos anos seguintes.
O que conhecemos hoje como a “comunidade” de Rio das Pedras abrangia uma área que se dividia em vários sítios e fazendas. As maiores delas pertenciam a pessoas como Alberto Monteiro da Silva, renomado advogado oriundo do Pará. Figura recorrente das colunas sociais tanto da imprensa paraense quanto da carioca. Além do Dr. Monteiro, figuras como as madames Grimaldi, Kate, Betin e Elsa Lopes Fonseca também possuíam terras na região que abrigava sítios e fazendas pertencentes a pessoas riquíssimas, que certamente faziam parte da elite da cidade.

Por que pessoas pertencentes a elite viviam em Rio das Pedras?
Naquela época, a região de Rio das Pedras era um lugar entendido como espetacular, nada menos que isso. Mesmo que o local ainda estivesse relativamente isolado (em relação ao
centro e zona sul) e que tivesse poucos meios de transporte, esse não era um problema para essa gente que possuía os carros mais luxuosos da frota carioca. E o isolamento era por si só, um atrativo. Por isso resolveram estabelecer verdadeiros recantos para descanso e realização de festas e banquetes com os seus círculos de amigos ricos, influentes e poderosos como eles (na certeza também de que tais festas faziam parte da engrenagem pela manutenção e busca de mais poder, prestígio e benesses).
Mas não só os ricaços buscaram a região. Pessoas humildes que suavam para ganhar a vida também se encantaram pelo lugar. Alguns desses aspectos foram descritos por antigas moradoras em recentes entrevistas realizadas pelo projeto “Lembranças: Rio das Pedras”. A equipe conversou com pessoas que começaram a viver em Rio das Pedras entre fins da década de 1940 e início da década de 1950.
Contrastando com a ideia de que a antiga área de Rio das Pedras era abandonada e largada no meio do nada, essas mulheres que testemunharam o desabrochar da história recente do território, detalharam a existência de um cenário completamente diferente. A existência de várias nascentes, lagoas, área verde e uma área de baixada propícia para a criação de gado, encorajava a implantação de estabelecimentos agrícolas.

Foi em um deles que o pai de Maria da Rocha Robadey, 80 anos, decidiu se fixar com toda família a partir de 1947, vindos da cidade de Cantagalo, localizada na região Serrana do Estado do Rio de Janeiro.
“Aonde é o Bussunda [Escola Municipal Cláudio Besserman Vianna] tinha uma grande fazenda ali, um sítio, não era fazenda, era um sítio onde havia muitas plantações, divisa com a Rua Velha. Havia muitas plantações de cana, de banana, batata doce, aipim, e tinha uma pequena horta que era para o consumo da família. Era a família José Simão.” - Maria da Rocha Robadey
E pelo visto, Simão já deveria morar há muito tempo ali. Dona Maria faz questão de enfatizar que o alicerce da casa “era alto, todo de pedra. Aí tinha uma escada, entrava para poder entrar na casa. Mas a metade da casa era de pedra”. Ou seja, segundo o relato, já havia gente ocupando a região de Rio das Pedras antes de 1947.
Em outro momento da entrevista ela faz menção a um certo “Seu Luizito”. Ele morava “lá perto da estação azul, ali onde é a estação azul, era estação azul, tinha uma casa ali enorme. É, igual a todo lugar, aqueles casarões, como você ainda vê pelo interior, amarela, aquelas casas compridas tipo um armazém”.
Dona Célia Maximiniana, nascida em Rio das Pedras em 1953, acha que os primeiros moradores eram da Família Militão. Segundo ela, eles moravam numa casa de pedra localizada na antiga estrada de Jacarepaguá.
Vários outros sítios são mencionados nas entrevistas. Dona Célia menciona alguns deles: “Seu Dudé plantava muita coisa. Seu Dudé tinha muito canavial de cana, Seu Pereira... O sítio do Seu Pereira vinha até aqui na divisa aqui da minha casa. Era tudo plantado - cana, banana, tudo! Muita coisa.”
E tudo isso movido por trabalho familiar. Essa é uma interessante questão pontuada pela jornalista Fernanda Calé durante a entrevista com Dona Célia. Além de destacar o emprego de mão-de-obra dos familiares, podemos constatar que a produção local extrapolava o mero nível de subsistência, ou seja, para consumo próprio, voltando-se ao abastecimento de um mercado local no território. Eis o momento em que a questão é colocada na entrevista:
“Fernanda: E aí empregava o pessoal nessa plantação?
Célia: Não, não sei não, ele mesmo que fazia com os filhos, com a mulher. Minha tia mesmo, minha tia Madalena morava ali, ela tinha isso aqui, aqui até aqui a atrás da minha casa, até lá na frente na rua. Era tudo plantado de cana, bananeira, era plantava muita coisa.
Fernanda: E aí tinha o pessoal então que tinha uma plantação própria?
Célia: Tinha. Eles vendiam para fora. Seu avô mesmo, seu avô (bisavó), né, que é pai da sua mãe (avó), né? Ele vendia na carroça, era uma carroça e ele saía vendendo, ele vendia batata-doce, aipim, couve. Essas coisas todinha que ele fazia a plantação.”
Sobre as fazendas, Dona Maria da Rocha Robadey faz uma curiosa observação: “Engraçado né, aqui só tinha.. é .. os maridos compravam as fazendas e colocava no nome das mulheres?”
A exceção teria sido a propriedade de Alberto Monteiro da Silva, o Dr. Monteiro. Sobre ele, Dona Maria, lembra:
“O doutor Monteiro, Alberto Monteiro da Silva, ele era o proprietário de tudo isso que você está vendo aqui, da Pedreira até lá no Pinheiro. Lá em cima no floresta — que hoje em dia é floresta — ele era dono de tudo isso da parte de cima, do lado direito, do lado de baixo, onde essa família morava, cuja casa foi a nossa primeira, era chamado Brejo, da Rua Velha para lá, era chamado Brejo, que hoje em dia é Rio das Pedras. Era um pântano.”
O fascínio do advogado pelo lugar era tamanho que, na verdade, sua propriedade alcançava o Itanhangá. Não há dúvida que Dr. Monteiro foi entre aqueles “grandes proprietários” o que mais se encantou pela região. Importante destacar que entre as duas regiões, Rio das Pedras e Itanhangá, Dr. Monteiro acabou priorizando seus investimentos na primeira, em Rio das Pedras decidiu montar uma pedreira, um condomínio voltado para a alta classe média e um clube de elite.

A fazenda que o advogado tocava também era a mais produtiva da área. Esse importante detalhe é enfatizado por Dona Maria em sua entrevista:
“Em toda parte que você vê hoje em dia, Cidade de Deus, Muzema, Tijuquinha, Rio das Pedras, tudo era mato, mato e sítio. Sítio, fazendas, a maioria já improdutiva. Só que a fazenda do Dr. Monteiro, sim, era uma fazenda. Fazenda porque havia muitos gados, cavalo, vaca, boi, porcos, muitas aves, e muitos patos. Ele era paraense, então ele trouxe de lá do Pará, muitos animais, mutum, arara, tudo isso tinha na fazenda.”

O então marido de Dona Maria acabou indo trabalhar exatamente na fazenda do Dr. Monteiro. Anos mais tarde, ele decidiu construir um condomínio - o Floresta, e um clube social - o Floresta Country Club:
“Começaram a construir casas luxuosas, que é o agora o Condomínio do Floresta. E ao mesmo tempo, ele fez o Floresta Country Club, que é um clube lá em cima no alto, tudo dele. E o meu então marido, o pai dos meus filhos, que trabalhava na fazenda dele, ele levou para trabalhar lá no Floresta”.
Ainda nos anos 1950, Dr. Monteiro decidiria instalar ali uma escola, a Adalgisa Monteiro, em homenagem a sua mãe.
Com o crescente volume de obras (condomínio de casas, clube, ruas) e de serviços ligados a elas, aumentou logicamente a demanda por braços que tornasse tudo isso possível. Tais empreendimentos, portanto, abriam oportunidades de trabalho para pessoas humildes, já que trabalhadores e trabalhadoras de fora teriam que ser atraídas, porque a pequena população local ainda não dava conta. E sendo para ali atraídas para o trabalho, muitas delas perceberam o quanto seria interessante se instalar ali, definitivamente.
Outro grande proprietário de Rio das Pedras era uma companhia, a Granja Agrícola Rio das Pedras. Aqui nesse anúncio ela ainda estava em organização. Ela tinha muitos planos para a região. Faltou combinar com os moradores mais humildes.

Não que fosse uma decisão simples. O local padecia com a falta de meios de transporte. Para quem não tinha carro – e só os donos das “fazendas” o possuíam, teria que contar com o auxílio de cavalos ou burros, porque o ônibus ligando Cascadura e Largo da Barra, que cruzava o local pela estrada de Jacarepaguá, passava apenas de duas em duas horas.
Telefone? Nem pensar. “Só rico que tinha”, resume Dona Elisa Antunes, moradora que vive na região desde 1947. Os únicos telefones instalados eram os dos fazendeiros. Nem água encanada havia.
O hospital mais próximo era o Miguel Couto, na Gávea, do outro lado do Joá. Os trabalhos de parto nessa época ficavam a cargo de poucas parteiras, como Dona Eufrásia, parteira que morava desde os anos 1950 ali e que chegou a oferecer seus serviços de forma gratuita em toda a região.
Por outro lado, o local oferecia uma série de comodidades. Nas entrevistas com moradores de Rio das Pedras, esse ponto emerge com força nas falas das entrevistadas. Fica mais fácil compreender porque tantas pessoas decidiram viver ali, em que pese tantos obstáculos.
Era difícil sim, pois para quem era humilde e vivia apenas de seu trabalho, não era nada fácil viver ali – não só ali como em toda a Baixada de Jacarepaguá nos anos 1940 e 1950. Contudo, os entrevistados são unânimes em afirmar que apesar de todas as dificuldades, era bom viver em Rio das Pedras. Célia Maximiniana, por exemplo, relembra saudosa o Rio das Pedras quase límpido de sua época: “Ah, o rio, que era bom, tinha peixe, lavava a roupa no rio. Era tudo limpinho aquele rio, era uma beleza”. Fato endossado por Maria da Rocha: “esse rio que que passa aqui, também era limpinho, tinha muitos peixes, muito camarão...”. E havia ainda a Lagoa da Tijuca, muito próxima e também limpa, onde as crianças adoravam pescar.
Mesmo a falta de água encanada parecia ser contrabalançada pelo poço do Seu Pereira, de onde, segundo Dona Célia, “a água saía geladinha”. Maria da Rocha assim detalha o mesmo aspecto: “A nossa água era uma bica vinha lá de cima do sertão, porque o sertão Tinha um morador aqui, outro ali, a água era limpa da nascente, aí descia pela pelo mato, aí se colocava uma calha de bambu e ali a gente…eu fui criada tomando aquela água pura e aí tinha um tanque grande de cimento, ali a gente tomava banho, de vez em quando caía camarão”.
Dona Maria chega a dizer na entrevista por ela concedida — como que querendo resumir o que era viver na localidade — que hoje chamamos de Rio das Pedras, que “não havia perigo”, pois era “então, campo imenso, nós éramos igual índio (indígenas), nós tínhamos liberdade”.
Bastante significativo que Dona Maria, ao ser perguntada sobre qual época gostaria de viver novamente caso fosse possível voltar no tempo, tenha situado sua escolha nos anos 1950.
Eis sua resposta:
“Sim, então, se eu pudesse voltar atrás, é, eu voltaria em 1956. Fiz a primeira comunhão, que eu era muito católica, fiz a primeira comunhão. A época que o Mário Pinote fez um postinho na Muzema e que dava uma farinha Eubra dos pobres, mas era tudo jogada política. Era uma época em 1956, foi a minha época dos meus sonhos. Dos meus sonhos! Todos que foram criados comigo ainda eram adolescentes como eu naquela ocasião.”
A partir dos anos 1960 muita coisa mudaria, novos desafios se apresentariam aos moradores e moradoras de Rio das Pedras. A região cresceria com a chegada dos migrantes, e outras histórias passariam a ser contadas, com um outro Rio das Pedras começando a tomar corpo.
O conteúdo que você acabou de ler faz parte do Lembranças: Rio das Pedras, uma iniciativa da Agência Lume que busca registar e disponibilizar a memória da Favela de Rio das Pedras. Para isso, nossa equipe está entrevistando diversos moradores e ex-moradores que viveram na região entre os anos de 1940 e 1990.
Para construir esta reportagem nós contamos com o apoio dos seguintes moradores:
Célia Maximiniano, Elisa Antunes e Maria da Rocha Robadey. Dos nossos colaboradores Fernanda Calé e Douglas Teixeira, e dos voluntários Hérika Freire, Leonardo Soares, Lucas Barros e Wellington Melo.
Se você também fez parte da história de Rio das Pedras e quer nos ajudar, entre em contato com a nossa equipe através do WhatsApp: (21) 99783-6904.




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