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Lembranças Rio das Pedras: Eufrásia da Rocha Robadey

  • Foto do escritor: Fernanda Calé
    Fernanda Calé
  • há 1 dia
  • 8 min de leitura

Atualizado: há 2 horas

Na imagem podemos ver uma colagem de fotos que mostram as personagens da reportagem
Imagem: Agência Lume.

Conheça a história da mulher que ajudou a trazer ao mundo as primeiras crianças nascidas em Rio das Pedras.

No final dos anos 1940, a região que viria a se tornar Rio das Pedras era um território de sítios, fazendas e poucas casas espalhadas entre plantações de cana, banana e batata-doce. A população local era composta por fazendeiros ricos e pessoas humildes que trabalhavam em suas terras. Foi nesse cenário rural, de escassez e solidariedade, que Dona Eufrásia da Rocha Robadey chegou, vinda de Cantagalo, no interior do Rio de Janeiro, trazendo consigo a família e o saber ancestral do parto.

Eufrásia nasceu em 1900 e, segundo sua família, teria chegado à região de Rio das Pedras em 1945 para morar no sítio da família de um senhor chamado José Simão. A casa ficava localizada onde hoje se encontra a Escola Municipal Cláudio Besserman Vianna.


“A minha mãe já fazia parto lá em Cantagalo, embora ela ainda fosse uma mulher nova, porque ela teve a minha irmã caçula, aos 47 anos. Então, ela deve ter vindo o quê? Com 45 [anos]. Era uma mulher nova ainda, né? Mas já era parteira. E aqui havia escassez de tudo.”, relembra Maria da Rocha Robadey, filha de Dona Eufrásia, hoje com 80 anos.

Pouco tempo depois, a família de Dona Eufrásia se mudaria e começaria a trabalhar na fazenda do Dr. Alberto Monteiro da Silva, grande proprietário de terras que ficavam localizadas onde hoje conhecemos como a região do Pinheiro e do Floresta. O cotidiano era de trabalho duro, mas também de vizinhança próxima, onde cada chegada era motivo de acolhimento e partilha.


“O intuito das pessoas humildes era de ajudar umas as outras. Não havia ganância”, conta Maria.


Da esq. para dir. João Bento, Eufrásia e Maria Robadey. | Foto: Aquivo pessoal Maria Da Rocha Robadey.
Da esq. para dir. João Bento, Eufrásia e Maria Robadey. | Foto: Aquivo pessoal Maria Da Rocha Robadey.
Encurtando distâncias em prol da vida

Naquele tempo, os moradores da região tinham muita dificuldade para conseguir assistência à saúde. Os hospitais públicos disponíveis na cidade ficavam em bairros distantes de Jacarepaguá, como o Hospital Municipal Miguel Couto, na Gávea; o Hospital Estadual Carlos Chagas, em Marechal Hermes; e a Santa Casa de Misericórdia, no Centro.


A distância entre os bairros se tornava ainda maior pela dificuldade de acessos e pela escassez de transporte. O Elevado do Joá, que liga a Barra a São Conrado, por exemplo, foi inaugurado em 1971. Até o ano de 1966, a principal forma de transporte para sair de Jacarepaguá e chegar à Zona Norte eram os bondes elétricos, que ligavam o bairro da Freguesia ao bairro de Cascadura. Era comum ver moradores de Rio das Pedras caminhando até a Praça Professora Camisão, na Freguesia, para embarcar nos bondes.

“Não havia hospitais, não havia Lourenço Jorge, não havia Cardoso Fontes naquela época. Só tinha o Miguel Couto, que era muito longe, e o Carlos Chagas, que era mais longe ainda. Não havia posto de socorro nenhum”, recorda Maria.

As poucas opções exigiam viagens longas e difíceis, muitas vezes impossíveis para mulheres em trabalho de parto. Por isso, o papel das parteiras era importantíssimo, para que as mulheres pudessem ter apoio durante um momento tão importante.


Foi o que aconteceu com Eliza Antunes Caetano, atualmente com 78 anos. A aposentada lembra até hoje o dia em que seu segundo filho nasceu. O ano era 1967 e Dona Eliza entrou em trabalho de parto. A família tentou chamar um táxi, mas não deu tempo. A solução foi contar com o apoio de Dona Eufrásia.


"O mais novo não deu tempo, chamou o táxi, chamou a assistência, quando chegou ele nasceu! Aí teve que chamar a Dona Eufrásia pra cortar o umbigo [...] O Rogério, pulou logo! Se eu tivesse na rua, eu acho que ele tinha nascido na rua.." - Relembra


Na foto podemos ver duas senhoras abraçadas olhando para a câmera e sorrindo, as duas estão em um quintal com muitas plantas.
Da esq. para dir. Maria da Rocha Rodabadey e Eliza Antunes Caetano. | Foto: Douglas Teixeira / Agência Lume

O historiador, professor e pesquisador do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), Luiz Teixeira, explica que o parto hospitalar era uma realidade distante para a maioria.


“A forma de nascer em hospitais e maternidades é muito nova ela vem mais principalmente do século XIX, mas só nas grandes cidades [...] Rio de Janeiro teve algumas maternidades célibes, como a Maternidade das Laranjeiras, Maternidade Escola, que existe até hoje, que foi uma das primeiras, fundada em 1904 e outras tantas posteriores, mas essas maternidades, elas atingiam um grupo pequeno de pessoas em relação ao acesso, principalmente pela distância, pelo número de leitos, pela possibilidade de ser atendida, essa maternidade era para poucos." - Explica.


O saber das parteiras: cuidado além do nascimento

Dona Eufrásia não apenas trazia crianças ao mundo. Seu trabalho era integral: envolvia o acompanhamento da gestante, avaliação dos riscos, o parto em si e o cuidado pós-parto. O ritual era completo; a parteira acompanhava a gestante, orientando sobre rotinas de alimentação e outros cuidados com a saúde. Após o parto, orientava a puérpera e a família sobre como cuidar do recém-nascido.


Dona Eufrásia também preparava a alimentação da mãe, o banho do bebê, lavava as roupas da criança e chegava a limpar a casa nos primeiros sete dias após o parto. O ciclo se encerrava após a queda do umbigo; a partir daí, os cuidados eram deixados sob responsabilidade da mãe.

"Muitas vezes eu fui com a minha mãe para lavar a roupinha da criança, para varrer a casa. Isso sem cobrar nada, absolutamente nada." - relembra Maria.

O respeito e a admiração por Dona Eufrásia atravessaram gerações. Maria da Conceição Antunes, a Dona Quinha, era afilhada de Dona Eufrásia e relembra com carinho os momentos com a madrinha:


"Era uma pessoa muito meiga, carinhosa, não tem o que falar mais, porque olha... eu fui privilegiada com isso. Eu estudava lá no Floresta, ela morava ali, toda vez que passava ela tava lá. Sempre aquela pessoa de dar aquele abraço, aquele carinho. A gente dava bênção, né, que naquela época a gente beijava a mão, passava pra lá, pra cá… ela vinha pra fazer os partos aqui por perto, aqui em cima, na família de um amigo nosso, eu que ia com ela." - conta.


Na foto podemos ver duas senhoras abraçadas enquando olham para a Câmare, uma das senhoras segura uma foto antiga.
Da dir. para esq. Maria da Rocha Robadey e Maria da Conceição Antunes. | Foto: Douglas Teixeira / Agência Lume
O renhecimento e respeito da comunidade

Mesmo desempenhando um papel tão importante a favor da saúde da mulher, com o avanço da medicina, a prática das parteiras começou a ser estigmatizada. Luiz Teixeira explica que, com a construção de novas maternidades nos centros urbanos, o debate sobre qual seria a forma correta de nascer passou a se tornar mais frequente e, com isso, o papel das parteiras foi sendo colocado na clandestinidade.


"Quando o parto hospitalar passa a ser cada vez mais frequente, passa a ser mais uma norma as mulheres terem suas crianças dentro das maternidades. Esse processo se conjuga com outro, que vem desde o início do século XX, dos médicos quererem tirar das parteiras essa possibilidade. Assim, cada vez mais as parteiras são identificadas pelos médicos e, consequentemente, pelos jornais, pela imprensa, como mulheres sem conhecimento, como mulheres que estão fazendo mal a outras mulheres e mesmo como mulheres que fazem aborto e coisas assim. Esse processo vai equiparar as parteiras ao que eles chamam de charlatões, pessoas que fazem a medicina, praticam a medicina sem o direito de praticá-la." – explica o pesquisador.

Apesar do debate na sociedade, a dedicação de Dona Eufrásia foi muito valorizada em Rio das Pedras, até porque estima-se que sua atuação mais intensa tenha ocorrido entre o fim das décadas de 1940 e 1960, período em que a disponibilidade de serviços públicos não atendia às demandas das mulheres humildes da região.

“A minha mãe fez mais de 1.000 partos, não cobrava nada a ninguém, ela nunca cobrou nada. Era chamada a qualquer hora, por qualquer pessoa, e não recusava ajuda, mesmo quando a sua saúde já estava debilitada." – diz Maria.

Eufrásia da Rocha Robadey faleceu aos 76 anos, em março de 1976. Na ocasião, muitas pessoas se organizaram para prestar homenagens, comparecendo ao enterro que aconteceu no cemitério do Pechincha. É o que lembra Célia Maximiniano, hoje com 72 anos; a aposentada nasceu por meio de um parto realizado por Dona Eufrásia.


"Foi muita gente, muita gente. Ela era muito querida, porque era uma pessoa que chamava ela, fosse a hora que fosse, ela ia. Ia para Rio das Pedras, Gardênia, Muzema... Todo mundo. Nossa Senhora! Quando ela faleceu, foram dois ônibus... cheios, só de afilhado que ela tinha!” – conta a aposentada.


Dona Maria Rocha Robadey se emociona ao lembrar o legado deixado por sua mãe, que foi responsável por trazer ao mundo a primeira geração de nascidos em Rio das Pedras.

“A minha mãe merecia ter uma rua com o nome dela. A minha mãe merecia ter uma estátua, com o busto dela. Porque ela não era só uma parteira. Ela era, acima de tudo, um ser humano fantástico. Não é porque eu sou filha dela que estou falando, não. Ela foi uma criatura extraordinária.” - relembra
Parteiras ontem e hoje: a luta por reconhecimento

Hoje, o cenário da Obstetrícia ainda é de disputa e resistência. Mariane Marçal, enfermeira obstétrica, sanitarista e integrante do Sankofa Atendimento Gestacional - coletivo de enfermeiras obstétricas que atua no Rio de Janeiro desde 2018, oferecendo acompanhamento gestacional, partos domiciliares planejados e pré-natal social, com foco especial em mulheres negras, periféricas e em situação de vulnerabilidade - esclarece que ainda é preciso que a sociedade avance nos direitos da mulher, principalmente no momento do parto.

“É um campo de disputa de maneira geral. Embora a gente já tenha o reconhecimento das parteiras tradicionais como patrimônio cultural do país, e embora exista a luta pela humanização do parto, esse não é um cenário consolidado; é um cenário de tensão e de disputa política ferrenha."

Segundo a profissional, o entendimento atual de parte da sociedade é o de que o saber ancestral não pode andar junto com a ciência, o que faz com que o trabalho dessas profissionais seja desvalorizado.


"A Obstetrícia, enquanto campo do saber dentro da saúde, passou a ser centrada na figura do médico e na valorização de uma intelectualidade baseada no conhecimento científico e estritamente acadêmico. Existe um entendimento social de que o saber legítimo é aquele produzido dentro das universidades, respaldado por pesquisas formais e legitimado pelas instituições médicas. Nesse contexto, as parteiras tradicionais são frequentemente colocadas à margem, uma vez que seus saberes, embora ancestrais e enraizados na experiência, na vivência e na oralidade, são desvalorizados por não se enquadrarem nos padrões da ciência hegemônica. Seus conhecimentos são frequentemente vistos como populares, informais, e por vezes até criminalizados ou considerados perigosos, por destoarem do que a medicina institucionalizada define como seguro ou adequado."


Apesar dos desafios, grupos como o Sankofa lutam pela valorização de um trabalho obstétrico que vá além da medicina baseada em fatos e leve também em consideração saberes, identidades, crenças e histórias particulares de cada família atendida.


O futuro do parto e da memória

A história de Dona Eufrásia é, acima de tudo, uma história de resistência, cuidado e construção coletiva. Sua atuação como parteira foi fundamental para a saúde e o bem-estar de gerações de Rio das Pedras, em um tempo de ausência do Estado e de solidariedade entre vizinhos. Hoje, seu legado inspira a luta pela valorização dos saberes ancestrais e pelo direito à autonomia das mulheres.

Como disse sua filha Maria: “O importante é lembrar do bem que a minha mãe fez. Ela merecia ser lembrada com carinho”.

Que a memória de Dona Eufrásia siga viva, como exemplo de humanidade, força e justiça para as futuras gerações de Rio das Pedras.


O conteúdo que você acabou de ler faz parte do Lembranças: Rio das Pedras, um projeto da Agência Lume que busca registar e disponibilizar a memória da Favela de Rio das Pedras. Para isso nossa equipe está entrevistando diversos moradores e ex-moradores que viveram na região entre os anos de 1940 e 1990.


Para construir esta reportagem nós contamos com o apoio dos seguintes moradores: Célia Maximiniano, Eliza Antunes Caetano, Maria da Conceição Antunes (Dona Quinha) e Maria Da Rocha Robadey.


E dos voluntários Leonardo Soares, Lucas Barros e Wellington Melo.


Se você também fez parte dessa história e quer nos ajudar, entre em contato com a nossa equipe através do WhatsApp: (21) 99783-6904.



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