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“Barra da Tijuca sem História antes dos anos 80”. Fato histórico ou discurso político?


Na foto podemos ver uma grande e vasto vale com vegetação rasteira, algumas árvores e montanhas ao fundo.
Antiga fazenda no local onde é hoje a Vila Pan-Americana. Fonte: Biblioteca de imagens do IBGE. Acesso em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo

Por: Leonardo Soares.

Professor de História (UFF) e membro do IHBAJA

 


 

O livro de Ayrton Luiz Gonçalves sobre a história de Barra da Tijuca, lançado em 1999, contém muitas informações importantes, dados e personagens históricos da região são mencionados, fatos relevantes são mencionados, alguns deles detalhadamente esmiuçados, como o da evolução fundiária do território nos três séculos após o início da colonização portuguesa.


Mas como todo livro de cunho memorialístico, o autor incorre em vícios retóricos (como frases de efeito) e incorreções históricas, o que se deve em boa parte dos casos ao método pouco criterioso em que são exploradas as fontes bibliográficas. Um exemplo é a versão por ele reiterada de que a região da Barra se tratava na primeira metade do século XX de uma área quase inóspita. Na página 7 de seu estudo, Gonçalves se derrama ao citar um trecho escrito por Ricardo Palma sobre o clássico de Armando Magalhães intitulado “O Sertão Carioca”. Livro lançado nos anos 30 e que tem como tema a então zona rural da cidade do Rio de Janeiro, dando destaque especial à região da Baixada de Jacarepaguá (incluindo-se aqui a Barra da Tijuca). Palma trata Magalhães como um verdadeiro desbravador, uma espécie de “sertanista” (“Sim, senhores, o Rio tem seu sertão. E que sertão maravilhoso, a cujas verdes portas se póde bater de automóvel, em escassas horas, por optimas estradas!”). Magalhães teria desvendado um mundo selvagem: “Quantos cariocas saberão, por ventura, que, a três ou quatro horas do centro urbano, ainda se encontram onças, entre ellas a suçuarana e a jaguatirica, e capivaras, e estranhos símios, entre os quaes o guariba, que há muitos anos, Emilio Goeldi já dava como raridade nas serras de Therezopolis? Nos últimos tempos da monarchia, ainda se caçava o queixada em Jacarepaguá; a paca abundava na Tijuca; o ererê e os patos em Manguinhos” (p. 6).


De todos os elogios de Palma a Magalhães, o que mais é apreciado por Ayrton Gonçalves é o fato do livro dar a conhecer “de que atrás da Pedra da Gávea, do maciço da Tijuca, existia um outro mundo até então inóspito e inculto, onde o homem convivia com a natureza da maneira mais íntima, dela tirando seu sustento, como os tamanqueiros, os carvoeiros, as esteireiras, os oleiros, os bananeiros, os cesteiros etc” (p. 7).


Na foto em preto e branco podemos ver alguns barracos de madeira, uma mulher de costas entrando em um dos barracos e uma criança pequena caminhando.
Família de moradores da Favela da Restinga. Pessoas que sumiram dos registros históricos de memorialistas da Barra da Tijuca a partir dos anos 90. Fonte: Fundo do Correio da Manhã/ Arquivo Nacional.

Não é que a Baixada de Jacarepaguá fosse um vazio. Mas era apenas “inóspito e inculto”. E acrescenta o autor: “Um mundo que, contemporâneo, ignorava os modismos da belle époque. Da eletricidade não sentia falta porque não a conhecia, pois usava o lampião a querosene. O mundo do Jeca Tatu tão bem descrito por Monteiro Lobato. Isto há sessenta anos” (p. 7).


Contudo, a descrição oferecida pelo autor a respeito de uma visita do próprio a Barra da Tijuca parece denotar a ideia de vazio: “Eu mesmo, em 1948, terminado o curso do CPOR, fui à Barra da Tijuca com outros colegas de turma, um dos quais tinha automóvel; mal conseguimos chegar às areias da praia que, batidas pelo vento forte da tarde, faziam e desfaziam pequenas dunas. Gente, ninguém. Era um dia de semana” (p. 8).


A principal consequência de tal perspectiva é o fortalecimento da visão de que a história de Jacarepaguá e da Barra da Tijuca passou por período de franca decadência após o fim da exploração de grandes unidades agrícolas com base na exploração de mão de obra escravizada. Teríamos então um intervalo entre o último quartel do século XIX e as primeiras obras do DNOS na região nos anos 30, que demarcariam esse tempo de abandono e desolação.


Mas não seria esse um discurso construído por memorialistas e apoiadores do modelo de implantação do mercado imobiliário na região (em especial a partir da ditadura militar implantada em 1964) para legitimar a conquista do território por parte desses mesmos agentes econômicos poderosos? A ideia de vazio não busca ela mesma esvaziar de qualquer conteúdo o período de ocupação efetuado por setores das classes populares no território naquele mesmo período?


É como se para Ayrton Gonçalves a expansão imobiliária de grandes grupos na área a despertasse de um longo sono. Suas palavras são inequívocas a esse respeito: “As condições geográficas adversas da região e as dificuldades causadas pela falta de infra-estrutura fizeram com que, até o final dos anos 50, a Barra da Tijuca, mais que o restante da Baixada de Jacarepaguá, hibernasse quase desconhecida e só, a partir da década seguinte, sobretudo nos anos 70, com a construção de vias adequadas de penetração, da implantação dos primeiros grandes empreendimentos imobiliários e do desenvolvimento das atividades comerciais, das quais o carro-chefe foi o Carrefour [...]” (p. 14).


Cabe à pesquisa histórica crítica e meticulosa demonstrar o quão frágil é esse postulado. A Barra da Tijuca e a Baixada de Jacarepaguá como um todo foi e é um território de histórias diversas. Todas vivas, plenas, vividas não sem contradições, mas potentes. É preciso, portanto, lançar luz sobre a inserção de outros grupos sociais no território, principalmente os segmentos das classes populares como pescadores, pequenos lavradores, vendeiros, criadores de gado etc.

 

Leonardo Soares dos Santos é graduado (2003) em História pela Universidade Federal Fluminense, onde realizou também o seu mestrado (2005) e doutorado (2009) em História Social. Suas pesquisas versam basicamente sobre as relações entre o espaço rural e urbano e suas implicações em termos de políticas públicas e configuração de grupos sociais. Atualmente trabalha como professor e pesquisador no Departamento de Fundamentos da Sociedade do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional do Polo Universitário da Universidade Fluminense, localizado em Campos dos Goytacazes. É membro-militante do Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá desde 2010.



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