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Foto do escritorFelipe Migliani

A "Chácara em Jacarepaguá" de Portinari e a luta pela preservação histórica

Na imagem podemos ver a foto da fachada que foi pintada por Portinari.

Pintura de Cândido Portinari, que retrata a vida rural do início do século XX, torna-se símbolo de debate sobre modernização e memória em Jacarepaguá.

 

A obra "Chácara em Jacarepaguá", pintada por Cândido Portinari em 1932, é um testemunho da vida rural do Rio de Janeiro durante o início do século XX. A pintura de óleo sobre tela possui dimensões de 60 x 70 cm e mostra o portão de entrada da chácara localizada na Estrada dos Três Rios, nº 1801, no bairro da Freguesia, localizado na Zona Oeste do Rio de Janeiro. 

 
 

A composição usa tons de verde, terra, ocre, azul, rosa e branco, com textura lisa e áreas espessas. A imagem mostra um muro com portão central, morros ao fundo e céu azul. Há uma entrada de alvenaria rosa com arco de telhas e portão de madeira verde com treliça, ladeada por trepadeiras com flores rosas e brancas. A mureta é baixa, pintada em ocre e coberta por telhas, com vegetação baixa à frente, sugerindo relva. Ao fundo, há dois morros: um em tom terra sem vegetação e outro verde, com céu levemente nublado.


Na imagem podemos ver a pintura de portinari

Esta propriedade pertencia a José Mariano Filho, irmão do poeta Olegário Mariano, amigo de Portinari no início de sua carreira. O artista frequentava o local aos domingos para almoçar. Cândido Portinari, que é um dos maiores nomes do modernismo brasileiro, capturou a essência bucólica e serena das chácaras que então predominavam na Baixada de Jacarepaguá. 


Nas últimas semanas, a obra ganhou destaque nas redes sociais após a Associação de Moradores de Jacarepaguá (AMAF) manifestar-se em uma publicação. A AMAF tomou conhecimento de que o Colégio e Curso Ícone, proprietário do imóvel, havia divulgado um novo projeto arquitetônico, alterando completamente a fachada ilustrada por Cândido Portinari.



Colégio cogitou modificar fachada histórica

Tudo começou quando Sidney Teixeira, membro da AMAF e do coletivo Jacarepaguá das Antigas, realizava uma pesquisa no bairro sobre possíveis lugares históricos. Alguém mencionou a fachada de uma das unidades do Colégio Ícone e Curso, localizado na Estrada dos Três Rios, nº1801. Ao pesquisar sobre a fachada descobriu que já havia registros, como arquivos nacionais e outros documentos sobre esse endereço, incluindo até um novo item do acervo de Cândido Portinari.


“Durante nossa investigação, encontramos fotos que sugerem que a propriedade é do século passado. Ao descobrir que o colégio planejava remover a estrutura, decidimos intervir, sentindo uma motivação quase divina. Propusemos a ação ao coletivo de preservação histórica, focado em resgatar e valorizar o patrimônio cultural da região”, explica. 


E de fato o colégio planejava ter uma nova fachada. No dia 11 de outubro, o Ícone Colégio e Curso anunciou em seus perfis oficiais uma nova unidade no bairro da Freguesia. A publicação incluía ilustrações detalhadas dos ambientes da unidade, destacando uma nova fachada que diferia completamente da representada na obra de Cândido Portinari. Na ocasião, os seguidores das redes sociais da instituição elogiaram as mudanças propostas.

Na imagem podemos ver um print da publicação feita pela unidade escolar no instagram que mostra o projeto do que seriaa nova fachada.

Preocupados com a possibilidade de acontecer algo sem respostas, a AMAF divulgou um manifesto no dia primeiro de novembro. A publicação nas redes sociais pediu apoio e foi em conjunto com outros coletivos ligados à luta patrimonial da cidade e do estado, incluindo membros da Federação das Associações de Moradores.


“Entramos em contato com o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade e com a vereadora Tainá de Paula, que é urbanista e pode se preocupar com a preservação , mas ainda não sabemos. Recebemos nosso ofício e estou tentando obter o código do processo. Também tentei contato com a escola, liguei para a secretaria e mandei um e-mail. Tentamos pelo Instagram, tanto do dono quanto do instituto ícone, para ver se conseguíamos algum e-mail, mas não tivemos resposta”, relata Sidney. 


A associação também mencionou perfis oficiais do colégio, da Subprefeitura de Jacarepaguá, da Prefeitura do Rio de Janeiro e de vários outros perfis locais e autoridades públicas, incluindo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o prefeito reeleito Eduardo Paes, na publicação feita em conjunto com diversos perfis da comunidade.


“A Freguesia de Jacarepaguá ainda guarda resquícios dos tempos de chácaras e fazendas - um deles é o portão histórico na Estrada dos Três Rios, 1801, que hoje faz parte do colégio @cerfreguesia. Esse portão, resistente à modernização e ao avanço imobiliário, conta parte de nossa história e do Rio de Janeiro. Essa estrutura, que encanta quem passa por ali, também inspirou o famoso pintor Portinari. Ele costumava visitar a chácara de um amigo na Freguesia e a retratou em uma pintura de 1932, eternizando sua beleza. Agora, esse patrimônio corre risco! Com a troca do colégio para a rede @iconecolegioecursooficial, uma reforma está prevista, e teme-se a remoção desse raro elemento histórico do bairro. Tentamos  contato com a instituição por e-mail e Instagram, mas ainda aguardamos resposta, Apelamos ao tomadores de decisão e à escola para que juntos preservemos essa entrada histórica, mantendo viva a memória da Freguesia das chácaras! Contamos com a ajuda e o apoio de todos que valorizam nossa história e nosso bairro”, denuncia. 


Após repercurssão, colégio se compromete a preservar a fachada

Após a publicação, a instituição de ensino, que antes recebia elogios, enfrentou críticas negativas sobre o novo projeto de fachada, considerado desrespeitoso, como comentaram alguns usuários. O Ícone Colégio respondeu no Instagram, comprometendo-se a revisar o projeto e publicou uma nota de esclarecimento na postagem da AMAF.

 
 

“A escola, antes de solicitar o projeto, verificou se a construção era tombada e a resposta foi negativa. O intuito era trazer realmente um aspecto mais moderno ao ambiente escolar. O casarão que fica dentro da escola está sendo preservado e reformado. Porém, reconhecemos que poderíamos ter analisado a questão com maior cuidado e pesquisa. E, diante da importância que a fachada tem para o bairro da Freguesia, assumimos o compromisso de refazer essa arquitetura histórica!”, explica. 

Na imagem podemos ver o pronunciamento oficial da escola.

Logo em seguida, a AMAF realizou uma publicação celebrando o compromisso público do colégio para preservação do patrimônio: “Celebramos o compromisso público do Colégio CER Freguesia / Colégio Ícone em manter o portão da chácara da sua instituição na Estrada dos Três Rios, 1801! O projeto  de fachada foi revisto, com a conservação! A Jacarepaguá de antigamente, assim, terá um testemunho da sua história preservado, podendo contar aos alunos e às futuras gerações como era os anos anteriores, antes do boom imobiliário. Colocamo-nos publicamente à disposição para o resgate da história desse elemento e em estar juntos para futuras movimentações de celebração, pesquisa e educação!”


No dia quatro de novembro houve uma reunião entre Marcelo Soares, que é Sócio Diretor do Colégio Ícone, com representantes da AMAF, do coletivo Jacarepaguá das Antigas e do Rio Casas e Prédios Antigos. Durante a reunião o sócio diretor se dispôs a receber a comunidade e a preservar, na medida do possível, as características do local. 


Ele está cuidando da reforma do casarão, que não é da época do engenho, mas se comprometeu a manter o portão e avaliar a possibilidade de voltar às cores originais. Muitas atividades culturais e exposições podem acontecer ali. Ainda estamos planejando melhor, mas eles devem se lançar como um colégio ícone no próximo ano, quando começará um novo período letivo. Por enquanto, o local está em obras”, relata Sidney, que foi um dos representantes da AMAF e do coletivo Jacarepaguá das Antigas. 


Na imagem podemos ver integrantes da AMAF na escola.

Entramos em contato com os representantes do Ícone Colégio e Curso para entender como será feita a conservação da fachada e como está ocorrendo a reforma do casarão. Mas não tivemos retorno até o momento da publicação desta matéria.


Elo vital entre o passado e o presente da região

A cena retratada por Portinari não apenas enaltece a beleza natural da área, mas também serve como um documento visual de uma era que viu profundas transformações sociais e urbanas.

 
 

Na década de 1930, Jacarepaguá ainda conservava muitas de suas características rurais, e "Chácara em Jacarepaguá" eterniza esse período de transição. Além de seu valor estético, "Chácara em Jacarepaguá" suscita reflexões sobre a preservação do patrimônio histórico e cultural do bairro. 


O arquiteto William Bittar é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Segundo ele, não é possível saber com precisão em qual ano foi construída a fachada retratada por Portinari, já que o movimento neocolonial ocorreu entre o final da década de 1910 e o final da década de 1940, tendo seu auge nos anos 1920. 


“As características desse movimento eram comuns em residências, escolas, hospitais e igrejas. Exemplos incluem o antigo Instituto de Educação na rua Mariz e Barros, o hospital Gafrée, a sede do Clube de Regatas Vasco da Gama e a Igreja da Lampadosa. Se o engenho é do século XIX, o que desconheço, não pertence ao movimento neocolonial. Seria, portanto, de algum casarão ou chácara da década de 1920”, explica. 


Bittar conta que a Baixada de Jacarepaguá era conhecida como Sertão Carioca por ser uma área rural até meados do século XX, com sítios e chácaras. Após a repartição dos lotes, surgiram residências menores, mas confortáveis. Mas a partir da década de 1970, a especulação imobiliária e o uso descontrolado do solo urbano causaram problemas atuais. E a propriedade com o portão representa um segundo momento de ocupação, mantendo características quase rurais, sendo um elo entre o passado e o presente. 


Leonardo Soares é Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá (IHBAJA). Ele ressalta que a paisagem bucólica de Jacarepaguá permaneceu relevante até o final dos anos 1960 e início dos anos 1970. E essa característica atraiu muitas celebridades do mundo artístico e político para a região.


Personalidades como Pedro Ernesto, Elza Soares, Cartola e Dona Zica, Garrincha e a família de Francis Hime. Jacarepaguá era conhecida pela tranquilidade e pelo verde, mantendo um equilíbrio entre o rural e a proximidade com o centro urbano. A região, dividida pela Zona Norte pelo maciço da Tijuca, também tinha alguns serviços disponíveis, o que a tornava atrativa”, relata. 


Soares também chama atenção para a questão da memória como fator fundamental para um lugar. Ele explica que um território não é feito apenas de serviços, modernização e progresso, mas também da identificação de sua população com o território que ela frequenta e habita. 


“A preservação de marcos arquitetônicos, culturais, históricos e ambientais é essencial para evitar o crescimento predatório e a destruição do território. Em Jacarepaguá, a preservação desses marcos é crucial para manter a autoestima dos moradores e garantir que eles não apenas sobrevivam, mas vivam e sintam-se bem em seu território. Manter esses marcos celebra a história e a característica verde da região, fundamentais para a identidade local”, explica.


Assim como Soares, Bittar alerta que cada fragmento desaparecido da cidade contribui para a falta de pertencimento. Ele conta que algumas cidades antiquíssimas, como Roma, Londres, Paris e Praga, preservam suas memórias sem abdicar do progresso. 


Aqui, a visão de que é preciso destruir a memória para buscar lucro é retrógrada, não moderna. A preservação de elementos como esse portão pode ser um marco na educação patrimonial dos alunos, demonstrando o compromisso da escola com o diálogo entre passado e futuro. Pode até mesmo se tornar o logotipo da escola, simbolizando essa conexão”, conta. 


AMAF solicita ao IRPH tombamento do imóvel 

No dia 29 de outubro, a AMAF solicitou o tombamento do imóvel ao Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH) através de um e-mail com a seguinte mensagem: 


Considerando informações obtidas por meio do perfil de Instagram do colégio Ícone

(ANEXO 1), localizado em Estrada dos Três Rios, 1801 - Freguesia de Jacarepaguá, é iminente a derrubada do antigo portão de chácara/fazenda. Esse portão (ANEXO 2), além de ter resistido a muitos anos de mudanças do bairro, trata-se de um notório exemplo da história de uma antiga Jacarepaguá, marcada por casarões e chácaras. Inclusive, por sua beleza, o famoso pintor Portinari o retratou em 1932 (ANEXO 3), tal como descrito no acervo digital do pintor. Solicitamos urgente avaliação do Instituto para tombamento dessa importante

referência arquitetônica da história da Freguesia e do Rio de Janeiro.


A associação, até a publicação desta reportagem, não teve retorno do instituto. A Agência Lume também entrou em contato, mas até o momento ainda não obteve resposta. Já o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) informou que não recebeu nenhum pedido de tombamento em nível federal do imóvel situado. O Iphan também disse que não acompanha o caso e que não tomará providências por não se tratar de um bem tombado em nível federal. 


No mesmo e-mail, o Iphan explica que o tombamento é um instrumento de proteção e reconhecimento do patrimônio cultural. O tombamento pode ser no nível municipal, estadual e federal. E no federal, pelo qual o Iphan é responsável, pode ser solicitado por qualquer cidadão, organização da sociedade civil ou instituição, conforme disposto no Decreto-Lei nº 25/1937 e na Constituição Federal de 1988


O interessado em propor o tombamento de um bem deve enviar requerimento ao Iphan, no qual estejam expressas a necessidade de proteção e a relevância do bem, contendo: identificação completa (nome, endereço, CPF ou CNPJ); foto atual que permita a identificação do bem; endereço do bem; e nome e endereço do proprietário, quando couber. Ao receber a solicitação, a equipe do Iphan dará início à instrução processual. Uma vez identificados os valores nacionais do bem, e após a devida análise técnica e jurídica, caberá ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural decidir sobre o seu tombamento federal. É possível solicitar o tombamento em nível federal por ofício, que deve ser dirigido à superintendência do Iphan no estado em que o imóvel se localiza, à Presidência do Iphan ou ao Ministério da Cultura”, explica.


A produção entrou em contato com a assessoria da vereadora Tainá de Paula e com o Instituto Rio Patrimônio, mas ambos não responderam até a publicação da matéria.

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