IHBAJA

8 de out de 20224 min

“Barra da Tijuca sem História antes dos anos 80”. Fato histórico ou discurso político?

Antiga fazenda no local onde é hoje a Vila Pan-Americana. Fonte: Biblioteca de imagens do IBGE. Acesso em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo

Por: Leonardo Soares.

Professor de História (UFF) e membro do IHBAJA



O livro de Ayrton Luiz Gonçalves sobre a história de Barra da Tijuca, lançado em 1999, contém muitas informações importantes, dados e personagens históricos da região são mencionados, fatos relevantes são mencionados, alguns deles detalhadamente esmiuçados, como o da evolução fundiária do território nos três séculos após o início da colonização portuguesa.

Mas como todo livro de cunho memorialístico, o autor incorre em vícios retóricos (como frases de efeito) e incorreções históricas, o que se deve em boa parte dos casos ao método pouco criterioso em que são exploradas as fontes bibliográficas. Um exemplo é a versão por ele reiterada de que a região da Barra se tratava na primeira metade do século XX de uma área quase inóspita. Na página 7 de seu estudo, Gonçalves se derrama ao citar um trecho escrito por Ricardo Palma sobre o clássico de Armando Magalhães intitulado “O Sertão Carioca”. Livro lançado nos anos 30 e que tem como tema a então zona rural da cidade do Rio de Janeiro, dando destaque especial à região da Baixada de Jacarepaguá (incluindo-se aqui a Barra da Tijuca). Palma trata Magalhães como um verdadeiro desbravador, uma espécie de “sertanista” (“Sim, senhores, o Rio tem seu sertão. E que sertão maravilhoso, a cujas verdes portas se póde bater de automóvel, em escassas horas, por optimas estradas!”). Magalhães teria desvendado um mundo selvagem: “Quantos cariocas saberão, por ventura, que, a três ou quatro horas do centro urbano, ainda se encontram onças, entre ellas a suçuarana e a jaguatirica, e capivaras, e estranhos símios, entre os quaes o guariba, que há muitos anos, Emilio Goeldi já dava como raridade nas serras de Therezopolis? Nos últimos tempos da monarchia, ainda se caçava o queixada em Jacarepaguá; a paca abundava na Tijuca; o ererê e os patos em Manguinhos” (p. 6).

De todos os elogios de Palma a Magalhães, o que mais é apreciado por Ayrton Gonçalves é o fato do livro dar a conhecer “de que atrás da Pedra da Gávea, do maciço da Tijuca, existia um outro mundo até então inóspito e inculto, onde o homem convivia com a natureza da maneira mais íntima, dela tirando seu sustento, como os tamanqueiros, os carvoeiros, as esteireiras, os oleiros, os bananeiros, os cesteiros etc” (p. 7).

Família de moradores da Favela da Restinga. Pessoas que sumiram dos registros históricos de memorialistas da Barra da Tijuca a partir dos anos 90. Fonte: Fundo do Correio da Manhã/ Arquivo Nacional.

Não é que a Baixada de Jacarepaguá fosse um vazio. Mas era apenas “inóspito e inculto”. E acrescenta o autor: “Um mundo que, contemporâneo, ignorava os modismos da belle époque. Da eletricidade não sentia falta porque não a conhecia, pois usava o lampião a querosene. O mundo do Jeca Tatu tão bem descrito por Monteiro Lobato. Isto há sessenta anos” (p. 7).

Contudo, a descrição oferecida pelo autor a respeito de uma visita do próprio a Barra da Tijuca parece denotar a ideia de vazio: “Eu mesmo, em 1948, terminado o curso do CPOR, fui à Barra da Tijuca com outros colegas de turma, um dos quais tinha automóvel; mal conseguimos chegar às areias da praia que, batidas pelo vento forte da tarde, faziam e desfaziam pequenas dunas. Gente, ninguém. Era um dia de semana” (p. 8).

A principal consequência de tal perspectiva é o fortalecimento da visão de que a história de Jacarepaguá e da Barra da Tijuca passou por período de franca decadência após o fim da exploração de grandes unidades agrícolas com base na exploração de mão de obra escravizada. Teríamos então um intervalo entre o último quartel do século XIX e as primeiras obras do DNOS na região nos anos 30, que demarcariam esse tempo de abandono e desolação.

Mas não seria esse um discurso construído por memorialistas e apoiadores do modelo de implantação do mercado imobiliário na região (em especial a partir da ditadura militar implantada em 1964) para legitimar a conquista do território por parte desses mesmos agentes econômicos poderosos? A ideia de vazio não busca ela mesma esvaziar de qualquer conteúdo o período de ocupação efetuado por setores das classes populares no território naquele mesmo período?

É como se para Ayrton Gonçalves a expansão imobiliária de grandes grupos na área a despertasse de um longo sono. Suas palavras são inequívocas a esse respeito: “As condições geográficas adversas da região e as dificuldades causadas pela falta de infra-estrutura fizeram com que, até o final dos anos 50, a Barra da Tijuca, mais que o restante da Baixada de Jacarepaguá, hibernasse quase desconhecida e só, a partir da década seguinte, sobretudo nos anos 70, com a construção de vias adequadas de penetração, da implantação dos primeiros grandes empreendimentos imobiliários e do desenvolvimento das atividades comerciais, das quais o carro-chefe foi o Carrefour [...]” (p. 14).

Cabe à pesquisa histórica crítica e meticulosa demonstrar o quão frágil é esse postulado. A Barra da Tijuca e a Baixada de Jacarepaguá como um todo foi e é um território de histórias diversas. Todas vivas, plenas, vividas não sem contradições, mas potentes. É preciso, portanto, lançar luz sobre a inserção de outros grupos sociais no território, principalmente os segmentos das classes populares como pescadores, pequenos lavradores, vendeiros, criadores de gado etc.


Leonardo Soares dos Santos é graduado (2003) em História pela Universidade Federal Fluminense, onde realizou também o seu mestrado (2005) e doutorado (2009) em História Social. Suas pesquisas versam basicamente sobre as relações entre o espaço rural e urbano e suas implicações em termos de políticas públicas e configuração de grupos sociais. Atualmente trabalha como professor e pesquisador no Departamento de Fundamentos da Sociedade do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional do Polo Universitário da Universidade Fluminense, localizado em Campos dos Goytacazes. É membro-militante do Instituto Histórico da Baixada de Jacarepaguá desde 2010.